Quando falamos de crise da ética, vêm-nos à mente fatores como corrupção, violência, tráfico de droga e outras tantas mazelas da sociedade atual. Tudo verdade. Esses fatos ameaçam a prática da ética. Desprestigiam-na.
Há, porém, outra causa que se origina do polido e branco saber científico. Aí se forja nova concepção do ser humano que corroi não determinada ética, mas sua viabilidade. Estamos em pleno mundo do estudo do cérebro. Neurocientistas, de alta formação teórica e técnica, como Gehard Roth, proclamam-nos felizes por não termos responsabilidade pelos atos criminosos da humanidade. Hitler, Stalin e nós mesmos, nas incoerências do agir, pagamos tributo decisivo e determinante aos neurotransmissores.
Alguns chegam ao cúmulo de pedir a abolição do código penal. Os crimes não pertencem ao mundo jurídico e ético, mas caem sob a tutela da biologia. A ética desloca-se do campo da liberdade, da decisão pessoal, da educação de valores, para a reeducação comportamental por meio da manipulação do cérebro.
Aliás, afirmação nada nova, como nos recorda o psiquiatra alemão Manfred Lütz no bestseller “Estamos loucos?” já no século XVIII Toland afirmara o cérebro comportar-se qual máquina de pensamentos, conforme suas próprias leis. Quem procederia tão loucamente de culpabilizar e de condenar à prisão um computador por ter gerado um programa nefasto? O ser humano se rege pelo computador, chamado cérebro, onde os neurotransmissores permitem tal ou tal reação. Carregar de culpa o ser humano por uma parte dele que lhe escapa da responsabilidade soa para tais cientistas como ignorância medieval.
Sem dúvida, o estudo do cérebro tem avançado e trazido luzes para entender a ação humana. Sem piano, ironiza Lütz, não se toca nenhuma sinfonia de Beethoven. Não existe nenhuma nota que não corresponda a uma tecla. Mas sem as idéias geniais do compositor alemão e sem a virtuosidade do pianista não se executa nenhuma sonata. O cérebro se assemelha ao piano. Mas quem toca nele? Como ele produz sons? Só a inteligência, o espírito, a decisão livre do ser humano o faz gerar pensamentos, comportamentos. Não responsabilizamos o piano, mas o compositor e executor. A ética não se refere aos neurotransmissores. Eles não dão conta da totalidade do ato humano, embora cumpram papel absolutamente imprescindível. Eles respondem, não unicamente à biologia e química, mas também à biografia do ser humano. E aí reside a força da ética.
Portanto, nem o extremo da ignorância da biologia do cérebro que sobrecarregaria e penalizaria a consciência humana ao máximo, nem exorbitar-lhe o poder a ponto de silenciar a liberdade e responsabilidade. Nenhuma ciência sozinha explica o agir humano. Só o diálogo entre a filosofia e as ciências do cérebro oferece luz para o comportamento ético. Sem neurotransmissores, ninguém atua. Sem liberdade, eles não passam de pura máquina.
Fonte: Padre João Batista Libânio
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