sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Padre vicentino apresenta Ozanam como precursor da 'Doutrina Social da Igreja'
O padre espanhol Jaime Corera (da Congregação da Missão - Ramo da Família Vicentina) elaborou um artigo que mostra Antonio Frederico Ozanam - principal fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo - sob uma nova óptica: precursor da Doutrina Social da Igreja.
A Doutrina Social da Igreja (DSI) é uma série de documentos com conteúdos que visam o combate às situações de vulnerabilidade social.
Neste texto, traduzido pelo padre Joelson Sotem, o padre Jame Corera enfoca Ozanam sempre preocupado com a situação de miséria que permeava a França, na ápoca dela.
Leia:
Datas de uma vida (1813-1853)
Frederico Ozanam faleceu com 40 anos. Seguindo a orientação de seu Pai, aos 23 anos já havia conseguido o doutorado em Direito e inclusive exerceu a advocacia por algum tempo. A sua verdadeira inclinação intelectual o levou ao estudo de história e literatura. Aos 26 anos doutorou-se em Letras; dois anos mais tarde conseguiu as cátedras de literatura e línguas estrangeiras na Universidade de Sorbonne. Publicou trabalhos importantes sobre a Idade Média, sobre os poetas franciscanos medievais, sobre Dante... Trabalhos que até hoje são consultados por sua importância para o conhecimento da cultura cristã medieval. No mesmo ano que começou como professor na Universidade de Paris casou-se com Amélia Soulacroix, com quem teve uma filha. Ainda hoje existe em Paris algum descendente herdeiro de seu sobrenome: Ozanam. Foi beatificado por João Paulo II na Catedral de Notre Dame de Paris no dia 22 de agosto de 1997. O calendário litúrgico da Igreja Católica celebra sua memória no dia 09 de Setembro.
A fundação das Conferências de São Vicente de Paulo (1833)
Embora Frederico Ozanam deixasse importantes “pegadas” para a história da cultura europeia, a verdadeira obra de sua vida, aquela que foi reconhecida oficialmente por João Paulo II perante a Igreja e perante o mundo na cerimônia de beatificação, começou anos antes de conseguir o seu primeiro doutorado. Aos 18 anos Frederico deixou sua família na cidade de Lyon, onde seu pai exercia a medicina. Frederico nasceu em Milão, porém somente com dois anos de idade sua família se mudou para a França. A mudança do ambiente familiar para o agitado mundo universitário da Capital Parisiense ocorreu muito repentinamente. Escreveu a um amigo, dois meses depois de chegar a Paris: “Distante daqueles que amo, percebi o quanto me atrai o desejo de viver num ambiente familiar, junto de meus pais. Paris me desagrada, e é uma cidade sem limites onde me encontro perdido, lugar de desterro”. O jovem Frederico viu-se mergulhado numa crise de fé provocada pelo ambiente incrédulo e agitado da universidade.
A crise não foi muito longa, porém muito intensa. Para sair dela, com seus 20 anos, somente dois depois de chegar a Paris, funda junto com um pequeno grupo de jovens estudantes de sua idade, as Conferências de São Vicente de Paulo. Este foi o verdadeiro ambiente de sua vida e de sua fé até sua morte prematura aos 40 anos de idade.
Os primeiros passos de Ozanam para tratar de confirmar sua fé haviam tomado forma nas conferências de História, nas quais tratava de defender no mundo universitário a influência da Igreja Católica na criação da cultura europeia. Porém, um jovem ateu influenciado pelo pensamento socialista do Saint-Simonismo chegou a dizer a Frederico Ozanam e a seus amigos católicos, os quais eram entusiastas em defender o trabalho da Igreja em favor da cultura, que a gloriosa tradição da Igreja não tinha nada parecido a oferecer para a redenção dos Pobres naqueles primeiros anos do século XIX. Foram tempos de brutal exploração econômica, do proletariado e do pavoroso e assustador crescimento da pobreza nas classes baixas da França. Aquele jovem censurava e criticava em suma que a Igreja havia se esquecido dos Pobres daquele tempo, advertindo-os que se eles quisessem provar a si mesmos e perante o mundo a verdade de sua fé, não havia outro caminho a não ser aquele assinalado no livro de São Tiago: a fé, se não se manifestar em obras em favor dos necessitados, está realmente morta (Tg 2,14-17).
As críticas daquele estudante ateu impressionaram Ozanam e seus amigos. As novas conferências que haveriam de fundar já não seriam mais de história, senão de CARIDADE. Assim descreve o próprio Frederico Ozanam, sete meses antes de sua morte, as ideias que impulsionaram a fundação das Conferências de São Vicente de Paulo:
“Fala-vos um daqueles oito estudantes que há vinte anos se reuniram sob a inspiração de São Vicente de Paulo, na capital da França. Sentíamos a necessidade de perseverarmos na fé em meio aos assédios que vinham de diversas teorias de falsos profetas. E dissemos: Trabalhemos; façamos algo que mostre a fortaleza de nossa fé. Porém, o que podíamos fazer para ser católicos de verdade senão de nos propormos a fazer o que mais agrada a Deus? Socorramos, pois, a nosso próximo como fazia Jesus Cristo. Para que Deus abençoe nosso apostolado nos falta uma coisa: obras de caridade. A benção dos Pobres é a benção de Deus”.
Foram estas Conferências de Caridade as que ele contempla, em sua idade madura, como o melhor baluarte de sua fé. Estas conferências não o estimulam a uma posição defensiva como as conferências de história. Estimulam não simplesmente à ação, como por exemplo, de propaganda da doutrina católica, senão a ação social da Igreja: “Socorramos a nosso próximo como fazia Jesus Cristo”. E ainda, uma ação social como manifestação privilegiada da fé, pois tal ação em favor do próximo é “o que mais agrada a Deus”.
Quando Ozanam pronunciou estas palavras faltavam ainda trinta e oito anos para que o Papa Leão XIII legitimasse esta visão da fé num documento oficial, a encíclica RERUM NOVARUM (Das coisas novas): a ação social impulsionada pela caridade de Cristo não somente como manifestação legítima da fé, senão como algo obrigatório para o conjunto da Igreja.
Neste aspecto decisivo da espiritualidade cristã da época moderna é Frederico Ozanam um verdadeiro precursor. Não foi o único em seu tempo que via as coisas assim dentro da Igreja Católica, porém é o único que subiu aos altares por ter vivido esta dimensão social como manifestação privilegiada da antiga fé cristã nos tempos modernos. Fé que se faz carne e história, não nos estudos de história, mas nas obras de ação caritativo social para transformar a história da humanidade sofredora.
O que foi começado em Paris, em maio de 1833, pelas mãos de um grupo de oito estudantes universitários é hoje uma grande organização mundial católica com aproximadamente 700 mil membros de todas as classes sociais, sem excluir as mais baixas ou as mais altas, que vivem sua fé e a demonstram na infinidade de atividades pelos necessitados em praticamente todas as nações do mundo, incluindo nações de maioria não católica e não cristã, como por exemplo, a Índia e o Paquistão.
O que é Doutrina Social da Igreja
Quando se fala de DSI (Doutrina Social da Igreja), aplica-se esta expressão normalmente a uma série de documentos de conteúdo social assinados por vários papas. Série que começa em 1891 com a Encíclica RERUM NOVARUM de Leão XIII. No entanto, os ensinamentos de conteúdo social não começaram com esta encíclica. Encontra-se em abundância no Antigo e Novo Testamento: ensinamentos sobre o bom uso dos bens materiais, sobre a dignidade humana, em particular sobre a dignidade dos Pobres, sobre a não violência, sobre a igualdade, a liberdade, a comunidade de bens, a escravidão, as obrigações das autoridades civis, as dívidas e empréstimos, o auxílio aos imigrantes, aos órfãos e viúvas, e em geral aos Pobres. Sobre esta base bíblica a tradição posterior foi elaborando um grande corpo da Doutrina Social que teve um primeiro momento de esplendor nos chamados “Padres da Igreja”, em particular os dos séculos IV e V. Os teólogos e moralistas da Idade Média elaboraram abundante material de conteúdo social, sobretudo nos numerosos tratados “De iustitia et iure” (Sobre a justiça e o direito). Ao final da Idade Média os descobrimentos dos novos mundos, desconhecidos da Europa até então, criaram para a consciência moral cristã, novos problemas que se centralizaram, sobretudo na questão da dignidade humana das populações indígenas das Américas. Sobre este problema e outros afins vários teólogos, em especial os da Universidade de Salamanca, criaram no século XVI uma rica produção de doutrina social que entre outros temas, defendeu com vigor a igualdade radical de todos os seres humanos. Destaca-se entre eles Francisco de Vitoria, o criador do chamado Direito Internacional (“Ius inter gentes” = Direito entre os povos).
Porém, fora de toda esta produção de caráter teórico, no terreno da ação social prática, numerosíssimas instituições da Igreja realizaram ao longo de vinte séculos uma profunda atividade de promoção social da classe Pobre da sociedade. Pense, por exemplo, o que deve a Europa sobre a atuação dos Beneditinos e de outras ordens em terrenos tão diversos como o desenvolvimento da agricultura, o da educação das classes populares, da libertação dos escravos, da transmissão da antiga cultura, das artes e inclusive da moderna ciência empírica.
A encíclica de Leão XIII inaugura ao final do século XIX a era que poderíamos chamar “Era Moderna” da doutrina oficial católica de conteúdo social. Porém ela mesma encontra-se ao final de um abundante trabalho de pensamento social cristão, produzido ao longo do mesmo século por numerosos pensadores católicos, entre os quais aparecem muitos leigos; entre eles e não o menor, Frederico Ozanam.
Frederico Ozanam e a “Questão Social”
A doutrina social moderna nasceu para tratar de encontrar uma solução de inspiração cristã à chamada “questão social”, expressão que hoje está quase em desuso, embora não desapareceu nem de longe o problema para o qual aponta.
A questão social era um fenômeno novo na história da Europa, produzido pelas grandes emigrações da população campesina, com frequência desapropriada e expulsa de suas terras, para os subúrbios das cidades, onde esperavam encontrar um trabalho do qual pudessem viver nas indústrias capitalistas nascentes. O fenômeno começou na Inglaterra na segunda metade do século XVIII e se expandiu rapidamente ao continente até o final da Revolução Francesa, no início do século XIX.
Quando Ozanam chegou a Paris em 1831, a questão social estava em “carne viva”: multidões de trabalhadores amontoados em pequenas casas nos bairros de periferia, pessoas sem trabalho, enfermidades, mortes prematuras. O Papa Leão XIII não exagerou de modo algum, quando sessenta anos depois descrevia a situação nestes tons sombrios:
“A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticados sob outra forma por homens, ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isso deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram um quinhão de um pequeno número de ricos e de opulentos, que impõe assim um julgo quase servil à imensa multidão dos operariados” (Rerum Novarum, 1).
Frederico Ozanam não pertencia à classe trabalhadora, pois por nascimento e por educação pertencia a uma família burguesa de profissional liberal. Mesmo assim ele não deixava de ver tudo isto com seus próprios olhos, primeiramente em Lyon – primeira cidade industrial da França naquele tempo, e logo depois em Paris. Escreveu o seguinte numa carta de 1848:
“Devemos trabalhar em favor das classes operárias, amontoadas em grandes cidades, pisoteadas por um egoísmo que os despreza, Pobres que vivem à margem de uma sociedade que se autoproclama livre e igual”.
Num tempo em que as lutas políticas pelas mudanças de governo e de regime (de república a monarquia e vice-versa) pareciam consumir as energias das classes dirigentes, Frederico Ozanam viu claramente e não se deixou enganar pelos discursos oficiais e por órgãos de opinião manipulados (igualmente em nossos dias) pelas classes poderosas. O verdadeiro problema da instabilidade e da luta social não era de maneira alguma a mudança de formas políticas, senão a questão social: as condições brutais da produção industrial e a injusta distribuição entre patrões e operários da riqueza produzida. Este texto impressionante de Frederico Ozanam que reflete com toda sutileza a situação de seu tempo (e que segue sendo também hoje o maior problema social de nossos dias):
“A questão que hoje agita o mundo não é uma questão de pessoas nem uma questão de formas políticas, senão que é uma questão social; é a luta dos que não tem nada e dos que tem em demasia, é o choque violento da pobreza e da opulência que faz tremer a terra sob nossos pés. É nosso dever, dos cristãos, de intervir entre estes inimigos irreconciliáveis, e conseguir que reine a igualdade enquanto seja possível entre humanos”.
Ozanam escreveu isto uns meses antes que Marx e Engels publicassem seu Manifesto Comunista. Portanto, ele não havia lido, nem necessitava fazê-lo para coincidir com eles na análise do que era o problema mais dramático da sociedade de seu tempo. As desigualdades gritantes são um sinal inequívoco da injustiça radical do sistema econômico-social que as produz.
Porém, para tentar resolver o problema, o cristão Frederico Ozanam propõe um remédio adicional naquilo que nem Marx e nem Engels, ainda que batizados, queriam pensar e que Marx repudiou explicitamente ao qualificar de “cachorros que querem solucionar o problema social como lhes bem parece” aos pensadores cristãos que propunham suas próprias soluções, como era o caso do bispo alemão Ketteler. Como propõe o Manifesto, também Frederico Ozanam pensa que é preciso lutar pela justiça e pela igualdade, porem “a caridade deve completar o que a justiça não pode fazer por si mesma”. E ainda antecipa que “a luta será terrível se a caridade não for a mediadora, e se os cristãos não colocarem em jogo toda a força do amor”, advertência de suma importância, que se tivesse sido levado em conta, teria evitado que o século XX se convertesse no século mais sangrento da história da humanidade.
Ozanam e o movimento social católico do século XIX
Acabamos de mencionar o bispo alemão Ketteler como objeto de escárnio por parte de Carlos Marx. Porém, ainda que talvez ele seja o mais lembrado por suas ideias e por sua destacada ação social, não foi Ketteler o único membro da Igreja Católica que tomou parte decisiva no terreno do pensamento e da ação social de inspiração cristã. Encontram-se também neste movimento alguns membros da hierarquia católica dentro da França e também fora dela, como é o caso do Cardeal Manning na Inglaterra ou, um pouco mais tarde, o também cardeal Gibbons dos Estados Unidos.
O que de verdade chama a atenção neste tema é a irrupção em cena de numerosos leigos católicos, alguns deles de grande notoriedade intelectual e também política, cujos nomes seguem ecoando hoje em dia na história moderna do pensamento social católico. Frederico Ozanam foi um deles, e certamente não o menor, senão um dos mais influentes através da cátedra, de uma abundante produção de periódicos renomados e inclusive pela participação na ação política de seu tempo. Aos vinte e um anos escrevia a um amigo: “Querem fazer de mim uma espécie de líder da juventude católica do país”. Entre suas amizades e também entre seus oponentes, aparecem todas as grandes figuras do catolicismo francês da primeira metade do século XIX: Chateaubriand, Lamartine, Montalembert, Lamennais, o padre Lacordaire, Louis Veuillot... Porém é preciso atribuir-lhe e isto somente a Frederico Ozanam, a ideia e a fundação de uma instituição católica de ação caritativa social que ainda perdura com muita força, cento e oitenta anos depois de fundada: as conferências ou Sociedade de São Vicente de Paulo.
Falamos de oponentes de Ozanam, pois os teve, e de grande notoriedade, sobretudo no terreno político. Embora ele mesmo fosse durante sua juventude um declarado legitimista monárquico, acolheu em sua idade adulta a chegada da democracia, fruto da revolução de fevereiro de 1848, como um sinal dos tempos que se deveria reconhecer como um sinal inequívoco da providência de Deus que rege a história:
“O que aprendi da história me dá o direito a crer que a democracia é a expressão natural do progresso político, e que Deus conduz o mundo para ela. A revolução de fevereiro (escreve somente dois meses após a revolução de 1848) não é para mim uma desgraça pública; é um progresso. Eu desejo a soberania do povo”.
Muito tempo custou a Igreja Católica, ancorada boa parte dela na antiga aliança feudal entre o trono e o altar, aceitar de coração esta visão. Por isso Frederico Ozanam encontrou oponentes no próprio mundo católico.
Porém, não foi tanto sua clara opção pelas formas democráticas de organização social que suscitaram a oposição contra Ozanam, senão, sobretudo sua opção no terreno social em favor das classes mais Pobres: “... estas massas carinhosamente amadas pela Igreja, porque representam a pobreza que Deus ama e o trabalho que Deus abençoa. Vamos até este povo e ajudemos não somente com a esmola que imobiliza o homem, senão também lhes ajudando a criar suas próprias instituições que os façam melhores ao tornarem-se autônomos. Peço que em vez de adotarmos os interesses de uma burguesia egoísta, nos ocupemos do povo. É neste povo onde vejo sinais de fé e de moralidade suficientes para salvar uma sociedade que as classes altas perderam”.
Esta postura decisiva foi que causou desgosto em muitas pessoas importantes de dentro e de fora da Igreja. Porém a opção de Ozanam era impecável desde o ponto de vista do evangelho, e a verdade acabou prevalecendo na Igreja. E embora não foi fácil, a nova visão e o movimento social criado nos tempos de Frederico Ozanam, suscitado por ele, veio a receber o referendo oficial da Igreja na primeira encíclica social, a RERUM NOVARUM de Leão XIII e logo mais na infinidade de documentos posteriores até nossos dias.
Em pleno século XX, quando a mudança de mentalidade em temas sociais e políticos tornaram-se conhecido em boa parte da Igreja, encontramos este testemunho de Luigi Sturzo, grande teórico e organizador do movimento democrático cristão internacional:
“Ozanam foi um dos primeiros a falar de uma democracia cristã, já como orientação econômica e social em favor das classes trabalhadoras, já como forma política da sociedade. Foi o primeiro a intuir seu desenvolvimento histórico, e pode por isso ser chamado o primeiro líder da democracia cristã”.
A alma da opção social de Ozanam: a visão cristã do Pobre
“Aproximar-se de Cristo presente nos Pobres é o centro de nossa espiritualidade”, diz o regulamento da Sociedade de São Vicente de Paulo. Este também foi o centro da visão espiritual e social de Frederico Ozanam, um elemento que, dissemos acima, não só estava ausente da visão de reformadores sociais como o Simonismo, Marx, Proudhon, ou qualquer dos muitos socialistas utópicos e não utópicos do século XIX, senão que foi contestado por quase todos eles. Alguns deles chegaram até certo ponto admirar a Jesus Cristo como um grande benfeitor, ou um grande filantropo. Não estavam enganados ao qualificá-lo desta forma, porém isto é pouco.
Jesus Cristo foi certamente um grande filantropo, o maior de todos eles. Quem amou a toda humanidade, tanto como Jesus Cristo, que deu sua vida pelos judeus e gentios, por escravos e exploradores, por amigos e inimigos? Ainda mais: ele é o único caminho que se dá para a humanidade para que consiga o fim de toda vida humana, chegar a Deus. Se não chega a Deus, todo ser humano individual, porém também a sociedade em seu conjunto ficará frustrada no mais profundo do seu ser, pois “nosso coração está inquieto até que descanse em Ti” (Santo Agostinho), verdade que o Concílio Vaticano II voltou a recordar para a humanidade atual:
“O verbo de Deus, por quem tudo foi feito, encarnou-se para salvar a todos e recapitular todas as coisas. O Senhor é o fim da história humana, ponto de convergência para a qual tendem os desejos da história e da civilização, centro da humanidade, gozo do coração humano e plenitude total de suas aspirações” Gaudium et Spes, 45.
De modo que neste período final da história, a que começa com a vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, “não há debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos nos salvar” mais que o nome de Jesus (Atos 4,12).
Porém, uma vez exaltado à direita do Pai, o mesmo Jesus já não é visível na história da humanidade posterior à sua Ascenção. Certamente está presente, embora não visivelmente, quando dois ou três se reúnem em seu nome, nos sacramentos, na oração pessoal e na oração partilhada, na dor, na alegria, nas diversas circunstâncias da vida diária, na prática do amor fraterno. Porém, sua presença mais viva, aquela que Ele mesmo destacou expressamente em seus ensinamentos, se dá naquele que tem fome, no que tem sede, naquele que está nú, no preso... Pois “tudo o que fizestes ao menor de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”.
Assim sendo, para chegar a Cristo, que é o único caminho para Deus, o caminho privilegiado e infalível, passa, sobretudo pelo necessitado, pelo Pobre. Assim expressa Frederico Ozanam esta convicção num texto que reflete com vivacidade a visão que chegou a ser fundamental em sua maneira de viver a fé cristã, visão que continua sendo até hoje a alma da espiritualidade própria da Sociedade de São Vicente de Paulo:
“Os Pobres, os vemos com nossos olhos; ali estão, e podemos colocar os dedos em suas chagas e feridas; as marcas da coroa de espinhos são visíveis em seus rostos. Vós, os Pobres, são a imagem sagrada de Deus, a quem não vemos, e como não podemos amá-Lo de outra maneira, O amaremos em vossas pessoas. Vós sois nossos mestres, e nós seremos vossos servidores”.
Advirta-se a radicalidade da convicção: “Não podemos amar a Deus de outra maneira”... A não ser nas chagas e coroas de espinhos que estas imagens vivas de Cristo levam em seus pés, em suas mãos e em seu rosto. Ao dizer isto, Frederico Ozanam revela uma unidade profunda de visão com aquele que ele mesmo e seus amigos fundadores tomaram por patrono e inspirados de suas conferências: São Vicente de Paulo. Inúmeras vezes repetiu a quem se deixou inspirar por ele que “os Pobres são nossos mestres e senhores”. De acordo com a ideia de que o Pobre é a imagem viva de Jesus Cristo, eis aqui como expressa São Vicente de Paulo:
“Não temos que olhar os Pobres segundo seu aspecto exterior. Virai a medalha, e à luz da fé, vereis que os Pobres nos representam o Filho de Deus” (Obras completas de São Vicente de Paulo, CEME, Salamanca, tomo XI, p. 725).
Esta visão do Pobre não foi invenção de Vicente de Paulo e nem de Frederico Ozanam. Ambos encontraram-na no Evangelho. Foi também a visão que durante séculos inspirou os imensos esforços que fez o mundo cristão pela redenção histórica e eterna dos Pobres. Porém a ideia começou a se difundir precisamente nos tempos de Vicente de Paulo, perante o crescimento vertiginoso da população Pobre. A sociedade, através de seus chefes políticos, começou a tratar o problema da pobreza, com meios preferencialmente repressivos, como sendo uma mera questão de ordem social. O século XVIII, quase acabou com toda visão cristã ante o problema da pobreza crescente.
De maneira que quando muitos reformadores e revolucionários do século XIX e também do século XX, assustados com as dimensões gigantescas da pobreza criada pela revolução capitalista industrial que ia se apoderando não só da Europa senão de todo o mundo, começaram a pensar em suas próprias receitas para resolver o problema. E nenhum deles, fora os de inspiração cristã, como Frederico Ozanam, lhes passou pela cabeça apelar para a visão cristã tradicional para dar solidez a suas teorias e seus esforços para tratar de resolver o maior problema social daquele tempo, que se agravou ainda mais em nossos dias.
Porém, como também lembrou a toda humanidade o Concílio Vaticano II, que quando se deixa Deus de lado, os mesmos esforços para humanizar a vida social e torná-la mais justa, tornam-se ainda mais cruel ao homem e à organização da sociedade. Exemplo disto, que não tem sido o único ao longo do século XX foi a Revolução de Outubro (Revolução Russa em 1917, também conhecida como Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha).
Frederico Ozanam, precursor do apostolado dos leigos
Os leigos têm por si só uma vocação ao apostolado que não brota da hierarquia, senão de sua união pessoal com Cristo, cabeça da Igreja, ou seja, de seu batismo:
“Inseridos pelo batismo no Corpo Místico de Cristo, é o Senhor mesmo que os destina ao apostolado” (Apostolicam actuositatem, 3).
Esta missão ao apostolado, como dizíamos, não nasce da hierarquia da Igreja, embora surja dentro da Igreja e deve ter em conta “os princípios e os auxílios espirituais” que emanam da hierarquia, pois esta tem como função própria: “orientar o exercício do apostolado para o bem comum da Igreja”, e por isso tem o dever de “vigiar para que se preservem a doutrina e a ordem” (Apostolicam actuositatem, 24).
A partir destas ideias do Concílio Vaticano II, tudo isto chegou a ser hoje uma doutrina suficientemente conhecida e aceita pelo conjunto da Igreja. Porém, nos tempos de Frederico Ozanam, na primeira metade do século XIX, estava muito longe de ser esta uma mentalidade predominante na Igreja Católica. Para Ozanam, já não seria surpresa em seu tempo, estas ideias do Concílio Vaticano II. Ele quis se assegurar da natureza prioritariamente leiga em suas conferências. Frederico Ozanam o fez com toda clareza já no começo das conferências de maneira inequívoca e simples:
“Queremos que esta Sociedade (de São Vicente de Paulo) seja plenamente leiga, sem deixar de ser católica”.
Anos depois, Frederico Ozanam interessou-se pelo mundo das missões, e contribuiu com seus escritos aos recém-fundados: Anais da Propagação da fé (de 1848). De uma de suas contribuições, destacamos esta frase que resume perfeitamente sua visão de cristão leigo, maduro em sua fé e consciente de sua responsabilidade:
“O leigo encontra-se associado ao sacerdote na obra da redenção universal”.
Esta frase reflete perfeitamente a visão definitiva de Frederico Ozanam. A redenção universal da humanidade não pode ficar exclusivamente nas mãos do clero. É uma tarefa para todos os membros da Igreja, pois para todos os batizados que creem no seu nome, vale o mandato de Jesus de anunciar o evangelho a todas as criaturas e nações.
Só que dentro deste mandato de redenção anunciado para todos os povos, os membros da Sociedade de São Vicente de Paulo acreditam, desde a sua fundação, que o que cabe a eles, por vocação dada sem dúvida pelo Espírito do Senhor Jesus, é o de trabalhar não pela redenção de todas as classes de pessoas, mas somente para as pessoas Pobres. Neste trabalho, as Conferências de São Vicente de Paulo encontram como encontrou Frederico Ozanam, seu caminho próprio para chegar até ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo.
Fonte: Jaime Corera, C.M.. •Traduzido do espanhol para o português por: Joelson C. Sotem, C.M.. (11/Set/2012)
FONTE: DA REDAÇÃO DO SSVPBRASIL
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