O padre espanhol Jaime Corera (da Congregação da Missão - Ramo
da Família Vicentina) elaborou um artigo que mostra Antonio Frederico
Ozanam - principal fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo - sob
uma nova óptica: precursor da Doutrina Social da Igreja.
A Doutrina Social da Igreja (DSI) é uma série de documentos com
conteúdos que visam o combate às situações de vulnerabilidade social.
Neste texto, traduzido pelo padre Joelson Sotem, o padre Jame Corera
enfoca Ozanam sempre preocupado com a situação de miséria que permeava a
França, na ápoca dela.
Leia:
Datas de uma vida (1813-1853)
Frederico Ozanam faleceu com 40 anos. Seguindo a orientação de seu
Pai, aos 23 anos já havia conseguido o doutorado em Direito e inclusive
exerceu a advocacia por algum tempo. A sua verdadeira inclinação
intelectual o levou ao estudo de história e literatura. Aos 26 anos
doutorou-se em Letras; dois anos mais tarde conseguiu as cátedras de
literatura e línguas estrangeiras na Universidade de Sorbonne. Publicou
trabalhos importantes sobre a Idade Média, sobre os poetas franciscanos
medievais, sobre Dante... Trabalhos que até hoje são consultados por sua
importância para o conhecimento da cultura cristã medieval. No mesmo
ano que começou como professor na Universidade de Paris casou-se com
Amélia Soulacroix, com quem teve uma filha. Ainda hoje existe em Paris
algum descendente herdeiro de seu sobrenome: Ozanam. Foi beatificado por
João Paulo II na Catedral de Notre Dame de Paris no dia 22 de agosto de
1997. O calendário litúrgico da Igreja Católica celebra sua memória no
dia 09 de Setembro.
A fundação das Conferências de São Vicente de Paulo (1833)
Embora Frederico Ozanam deixasse importantes “pegadas” para a
história da cultura europeia, a verdadeira obra de sua vida, aquela que
foi reconhecida oficialmente por João Paulo II perante a Igreja e
perante o mundo na cerimônia de beatificação, começou anos antes de
conseguir o seu primeiro doutorado. Aos 18 anos Frederico deixou sua
família na cidade de Lyon, onde seu pai exercia a medicina. Frederico
nasceu em Milão, porém somente com dois anos de idade sua família se
mudou para a França. A mudança do ambiente familiar para o agitado mundo
universitário da Capital Parisiense ocorreu muito repentinamente.
Escreveu a um amigo, dois meses depois de chegar a Paris: “Distante
daqueles que amo, percebi o quanto me atrai o desejo de viver num
ambiente familiar, junto de meus pais. Paris me desagrada, e é uma
cidade sem limites onde me encontro perdido, lugar de desterro”. O jovem
Frederico viu-se mergulhado numa crise de fé provocada pelo ambiente
incrédulo e agitado da universidade.
A crise não foi muito longa, porém muito intensa. Para sair dela, com
seus 20 anos, somente dois depois de chegar a Paris, funda junto com um
pequeno grupo de jovens estudantes de sua idade, as Conferências de São
Vicente de Paulo. Este foi o verdadeiro ambiente de sua vida e de sua
fé até sua morte prematura aos 40 anos de idade.
Os primeiros passos de Ozanam para tratar de confirmar sua fé haviam
tomado forma nas conferências de História, nas quais tratava de defender
no mundo universitário a influência da Igreja Católica na criação da
cultura europeia. Porém, um jovem ateu influenciado pelo pensamento
socialista do Saint-Simonismo chegou a dizer a Frederico Ozanam e a seus
amigos católicos, os quais eram entusiastas em defender o trabalho da
Igreja em favor da cultura, que a gloriosa tradição da Igreja não tinha
nada parecido a oferecer para a redenção dos Pobres naqueles primeiros
anos do século XIX. Foram tempos de brutal exploração econômica, do
proletariado e do pavoroso e assustador crescimento da pobreza nas
classes baixas da França. Aquele jovem censurava e criticava em suma que
a Igreja havia se esquecido dos Pobres daquele tempo, advertindo-os que
se eles quisessem provar a si mesmos e perante o mundo a verdade de sua
fé, não havia outro caminho a não ser aquele assinalado no livro de São
Tiago: a fé, se não se manifestar em obras em favor dos necessitados,
está realmente morta (Tg 2,14-17).
As críticas daquele estudante ateu impressionaram Ozanam e seus
amigos. As novas conferências que haveriam de fundar já não seriam mais
de história, senão de CARIDADE. Assim descreve o próprio Frederico
Ozanam, sete meses antes de sua morte, as ideias que impulsionaram a
fundação das Conferências de São Vicente de Paulo:
“Fala-vos um daqueles oito estudantes que há vinte anos se reuniram
sob a inspiração de São Vicente de Paulo, na capital da França.
Sentíamos a necessidade de perseverarmos na fé em meio aos assédios que
vinham de diversas teorias de falsos profetas. E dissemos: Trabalhemos;
façamos algo que mostre a fortaleza de nossa fé. Porém, o que podíamos
fazer para ser católicos de verdade senão de nos propormos a fazer o que
mais agrada a Deus? Socorramos, pois, a nosso próximo como fazia Jesus
Cristo. Para que Deus abençoe nosso apostolado nos falta uma coisa:
obras de caridade. A benção dos Pobres é a benção de Deus”.
Foram estas Conferências de Caridade as que ele contempla, em sua
idade madura, como o melhor baluarte de sua fé. Estas conferências não o
estimulam a uma posição defensiva como as conferências de história.
Estimulam não simplesmente à ação, como por exemplo, de propaganda da
doutrina católica, senão a ação social da Igreja: “Socorramos a nosso
próximo como fazia Jesus Cristo”. E ainda, uma ação social como
manifestação privilegiada da fé, pois tal ação em favor do próximo é “o
que mais agrada a Deus”.
Quando Ozanam pronunciou estas palavras faltavam ainda trinta e oito
anos para que o Papa Leão XIII legitimasse esta visão da fé num
documento oficial, a encíclica RERUM NOVARUM (Das coisas novas): a ação
social impulsionada pela caridade de Cristo não somente como
manifestação legítima da fé, senão como algo obrigatório para o conjunto
da Igreja.
Neste aspecto decisivo da espiritualidade cristã da época moderna é
Frederico Ozanam um verdadeiro precursor. Não foi o único em seu tempo
que via as coisas assim dentro da Igreja Católica, porém é o único que
subiu aos altares por ter vivido esta dimensão social como manifestação
privilegiada da antiga fé cristã nos tempos modernos. Fé que se faz
carne e história, não nos estudos de história, mas nas obras de ação
caritativo social para transformar a história da humanidade sofredora.
O que foi começado em Paris, em maio de 1833, pelas mãos de um grupo
de oito estudantes universitários é hoje uma grande organização mundial
católica com aproximadamente 700 mil membros de todas as classes
sociais, sem excluir as mais baixas ou as mais altas, que vivem sua fé e
a demonstram na infinidade de atividades pelos necessitados em
praticamente todas as nações do mundo, incluindo nações de maioria não
católica e não cristã, como por exemplo, a Índia e o Paquistão.
O que é Doutrina Social da Igreja
Quando se fala de DSI (Doutrina Social da Igreja), aplica-se esta
expressão normalmente a uma série de documentos de conteúdo social
assinados por vários papas. Série que começa em 1891 com a Encíclica
RERUM NOVARUM de Leão XIII. No entanto, os ensinamentos de conteúdo
social não começaram com esta encíclica. Encontra-se em abundância no
Antigo e Novo Testamento: ensinamentos sobre o bom uso dos bens
materiais, sobre a dignidade humana, em particular sobre a dignidade dos
Pobres, sobre a não violência, sobre a igualdade, a liberdade, a
comunidade de bens, a escravidão, as obrigações das autoridades civis,
as dívidas e empréstimos, o auxílio aos imigrantes, aos órfãos e viúvas,
e em geral aos Pobres. Sobre esta base bíblica a tradição posterior foi
elaborando um grande corpo da Doutrina Social que teve um primeiro
momento de esplendor nos chamados “Padres da Igreja”, em particular os
dos séculos IV e V. Os teólogos e moralistas da Idade Média elaboraram
abundante material de conteúdo social, sobretudo nos numerosos tratados
“De iustitia et iure” (Sobre a justiça e o direito). Ao final da Idade
Média os descobrimentos dos novos mundos, desconhecidos da Europa até
então, criaram para a consciência moral cristã, novos problemas que se
centralizaram, sobretudo na questão da dignidade humana das populações
indígenas das Américas. Sobre este problema e outros afins vários
teólogos, em especial os da Universidade de Salamanca, criaram no século
XVI uma rica produção de doutrina social que entre outros temas,
defendeu com vigor a igualdade radical de todos os seres humanos.
Destaca-se entre eles Francisco de Vitoria, o criador do chamado Direito
Internacional (“Ius inter gentes” = Direito entre os povos).
Porém, fora de toda esta produção de caráter teórico, no terreno da
ação social prática, numerosíssimas instituições da Igreja realizaram ao
longo de vinte séculos uma profunda atividade de promoção social da
classe Pobre da sociedade. Pense, por exemplo, o que deve a Europa sobre
a atuação dos Beneditinos e de outras ordens em terrenos tão diversos
como o desenvolvimento da agricultura, o da educação das classes
populares, da libertação dos escravos, da transmissão da antiga cultura,
das artes e inclusive da moderna ciência empírica.
A encíclica de Leão XIII inaugura ao final do século XIX a era que
poderíamos chamar “Era Moderna” da doutrina oficial católica de conteúdo
social. Porém ela mesma encontra-se ao final de um abundante trabalho
de pensamento social cristão, produzido ao longo do mesmo século por
numerosos pensadores católicos, entre os quais aparecem muitos leigos;
entre eles e não o menor, Frederico Ozanam.
Frederico Ozanam e a “Questão Social”
A doutrina social moderna nasceu para tratar de encontrar uma solução
de inspiração cristã à chamada “questão social”, expressão que hoje
está quase em desuso, embora não desapareceu nem de longe o problema
para o qual aponta.
A questão social era um fenômeno novo na história da Europa,
produzido pelas grandes emigrações da população campesina, com
frequência desapropriada e expulsa de suas terras, para os subúrbios das
cidades, onde esperavam encontrar um trabalho do qual pudessem viver
nas indústrias capitalistas nascentes. O fenômeno começou na Inglaterra
na segunda metade do século XVIII e se expandiu rapidamente ao
continente até o final da Revolução Francesa, no início do século XIX.
Quando Ozanam chegou a Paris em 1831, a questão social estava em
“carne viva”: multidões de trabalhadores amontoados em pequenas casas
nos bairros de periferia, pessoas sem trabalho, enfermidades, mortes
prematuras. O Papa Leão XIII não exagerou de modo algum, quando sessenta
anos depois descrevia a situação nestes tons sombrios:
“A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes
pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticados sob outra
forma por homens, ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo
isso deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de
crédito, que se tornaram um quinhão de um pequeno número de ricos e de
opulentos, que impõe assim um julgo quase servil à imensa multidão dos
operariados” (Rerum Novarum, 1).
Frederico Ozanam não pertencia à classe trabalhadora, pois por
nascimento e por educação pertencia a uma família burguesa de
profissional liberal. Mesmo assim ele não deixava de ver tudo isto com
seus próprios olhos, primeiramente em Lyon – primeira cidade industrial
da França naquele tempo, e logo depois em Paris. Escreveu o seguinte
numa carta de 1848:
“Devemos trabalhar em favor das classes operárias, amontoadas em
grandes cidades, pisoteadas por um egoísmo que os despreza, Pobres que
vivem à margem de uma sociedade que se autoproclama livre e igual”.
Num tempo em que as lutas políticas pelas mudanças de governo e de
regime (de república a monarquia e vice-versa) pareciam consumir as
energias das classes dirigentes, Frederico Ozanam viu claramente e não
se deixou enganar pelos discursos oficiais e por órgãos de opinião
manipulados (igualmente em nossos dias) pelas classes poderosas. O
verdadeiro problema da instabilidade e da luta social não era de maneira
alguma a mudança de formas políticas, senão a questão social: as
condições brutais da produção industrial e a injusta distribuição entre
patrões e operários da riqueza produzida. Este texto impressionante de
Frederico Ozanam que reflete com toda sutileza a situação de seu tempo
(e que segue sendo também hoje o maior problema social de nossos dias):
“A questão que hoje agita o mundo não é uma questão de pessoas nem
uma questão de formas políticas, senão que é uma questão social; é a
luta dos que não tem nada e dos que tem em demasia, é o choque violento
da pobreza e da opulência que faz tremer a terra sob nossos pés. É nosso
dever, dos cristãos, de intervir entre estes inimigos irreconciliáveis,
e conseguir que reine a igualdade enquanto seja possível entre
humanos”.
Ozanam escreveu isto uns meses antes que Marx e Engels publicassem
seu Manifesto Comunista. Portanto, ele não havia lido, nem necessitava
fazê-lo para coincidir com eles na análise do que era o problema mais
dramático da sociedade de seu tempo. As desigualdades gritantes são um
sinal inequívoco da injustiça radical do sistema econômico-social que as
produz.
Porém, para tentar resolver o problema, o cristão Frederico Ozanam
propõe um remédio adicional naquilo que nem Marx e nem Engels, ainda que
batizados, queriam pensar e que Marx repudiou explicitamente ao
qualificar de “cachorros que querem solucionar o problema social como
lhes bem parece” aos pensadores cristãos que propunham suas próprias
soluções, como era o caso do bispo alemão Ketteler. Como propõe o
Manifesto, também Frederico Ozanam pensa que é preciso lutar pela
justiça e pela igualdade, porem “a caridade deve completar o que a
justiça não pode fazer por si mesma”. E ainda antecipa que “a luta será
terrível se a caridade não for a mediadora, e se os cristãos não
colocarem em jogo toda a força do amor”, advertência de suma
importância, que se tivesse sido levado em conta, teria evitado que o
século XX se convertesse no século mais sangrento da história da
humanidade.
Ozanam e o movimento social católico do século XIX
Acabamos de mencionar o bispo alemão Ketteler como objeto de escárnio
por parte de Carlos Marx. Porém, ainda que talvez ele seja o mais
lembrado por suas ideias e por sua destacada ação social, não foi
Ketteler o único membro da Igreja Católica que tomou parte decisiva no
terreno do pensamento e da ação social de inspiração cristã.
Encontram-se também neste movimento alguns membros da hierarquia
católica dentro da França e também fora dela, como é o caso do Cardeal
Manning na Inglaterra ou, um pouco mais tarde, o também cardeal Gibbons
dos Estados Unidos.
O que de verdade chama a atenção neste tema é a irrupção em cena de
numerosos leigos católicos, alguns deles de grande notoriedade
intelectual e também política, cujos nomes seguem ecoando hoje em dia na
história moderna do pensamento social católico. Frederico Ozanam foi um
deles, e certamente não o menor, senão um dos mais influentes através
da cátedra, de uma abundante produção de periódicos renomados e
inclusive pela participação na ação política de seu tempo. Aos vinte e
um anos escrevia a um amigo: “Querem fazer de mim uma espécie de líder
da juventude católica do país”. Entre suas amizades e também entre seus
oponentes, aparecem todas as grandes figuras do catolicismo francês da
primeira metade do século XIX: Chateaubriand, Lamartine, Montalembert,
Lamennais, o padre Lacordaire, Louis Veuillot... Porém é preciso
atribuir-lhe e isto somente a Frederico Ozanam, a ideia e a fundação de
uma instituição católica de ação caritativa social que ainda perdura com
muita força, cento e oitenta anos depois de fundada: as conferências ou
Sociedade de São Vicente de Paulo.
Falamos de oponentes de Ozanam, pois os teve, e de grande
notoriedade, sobretudo no terreno político. Embora ele mesmo fosse
durante sua juventude um declarado legitimista monárquico, acolheu em
sua idade adulta a chegada da democracia, fruto da revolução de
fevereiro de 1848, como um sinal dos tempos que se deveria reconhecer
como um sinal inequívoco da providência de Deus que rege a história:
“O que aprendi da história me dá o direito a crer que a democracia é a
expressão natural do progresso político, e que Deus conduz o mundo para
ela. A revolução de fevereiro (escreve somente dois meses após a
revolução de 1848) não é para mim uma desgraça pública; é um progresso.
Eu desejo a soberania do povo”.
Muito tempo custou a Igreja Católica, ancorada boa parte dela na
antiga aliança feudal entre o trono e o altar, aceitar de coração esta
visão. Por isso Frederico Ozanam encontrou oponentes no próprio mundo
católico.
Porém, não foi tanto sua clara opção pelas formas democráticas de
organização social que suscitaram a oposição contra Ozanam, senão,
sobretudo sua opção no terreno social em favor das classes mais Pobres:
“... estas massas carinhosamente amadas pela Igreja, porque representam a
pobreza que Deus ama e o trabalho que Deus abençoa. Vamos até este povo
e ajudemos não somente com a esmola que imobiliza o homem, senão também
lhes ajudando a criar suas próprias instituições que os façam melhores
ao tornarem-se autônomos. Peço que em vez de adotarmos os interesses de
uma burguesia egoísta, nos ocupemos do povo. É neste povo onde vejo
sinais de fé e de moralidade suficientes para salvar uma sociedade que
as classes altas perderam”.
Esta postura decisiva foi que causou desgosto em muitas pessoas
importantes de dentro e de fora da Igreja. Porém a opção de Ozanam era
impecável desde o ponto de vista do evangelho, e a verdade acabou
prevalecendo na Igreja. E embora não foi fácil, a nova visão e o
movimento social criado nos tempos de Frederico Ozanam, suscitado por
ele, veio a receber o referendo oficial da Igreja na primeira encíclica
social, a RERUM NOVARUM de Leão XIII e logo mais na infinidade de
documentos posteriores até nossos dias.
Em pleno século XX, quando a mudança de mentalidade em temas sociais e
políticos tornaram-se conhecido em boa parte da Igreja, encontramos
este testemunho de Luigi Sturzo, grande teórico e organizador do
movimento democrático cristão internacional:
“Ozanam foi um dos primeiros a falar de uma democracia cristã, já
como orientação econômica e social em favor das classes trabalhadoras,
já como forma política da sociedade. Foi o primeiro a intuir seu
desenvolvimento histórico, e pode por isso ser chamado o primeiro líder
da democracia cristã”.
A alma da opção social de Ozanam: a visão cristã do Pobre
“Aproximar-se de Cristo presente nos Pobres é o centro de nossa
espiritualidade”, diz o regulamento da Sociedade de São Vicente de
Paulo. Este também foi o centro da visão espiritual e social de
Frederico Ozanam, um elemento que, dissemos acima, não só estava ausente
da visão de reformadores sociais como o Simonismo, Marx, Proudhon, ou
qualquer dos muitos socialistas utópicos e não utópicos do século XIX,
senão que foi contestado por quase todos eles. Alguns deles chegaram até
certo ponto admirar a Jesus Cristo como um grande benfeitor, ou um
grande filantropo. Não estavam enganados ao qualificá-lo desta forma,
porém isto é pouco.
Jesus Cristo foi certamente um grande filantropo, o maior de todos
eles. Quem amou a toda humanidade, tanto como Jesus Cristo, que deu sua
vida pelos judeus e gentios, por escravos e exploradores, por amigos e
inimigos? Ainda mais: ele é o único caminho que se dá para a humanidade
para que consiga o fim de toda vida humana, chegar a Deus. Se não chega a
Deus, todo ser humano individual, porém também a sociedade em seu
conjunto ficará frustrada no mais profundo do seu ser, pois “nosso
coração está inquieto até que descanse em Ti” (Santo Agostinho), verdade
que o Concílio Vaticano II voltou a recordar para a humanidade atual:
“O verbo de Deus, por quem tudo foi feito, encarnou-se para salvar a
todos e recapitular todas as coisas. O Senhor é o fim da história
humana, ponto de convergência para a qual tendem os desejos da história e
da civilização, centro da humanidade, gozo do coração humano e
plenitude total de suas aspirações” Gaudium et Spes, 45.
De modo que neste período final da história, a que começa com a vida,
morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, “não há debaixo do céu outro
nome dado aos homens pelo qual possamos nos salvar” mais que o nome de
Jesus (Atos 4,12).
Porém, uma vez exaltado à direita do Pai, o mesmo Jesus já não é
visível na história da humanidade posterior à sua Ascenção. Certamente
está presente, embora não visivelmente, quando dois ou três se reúnem em
seu nome, nos sacramentos, na oração pessoal e na oração partilhada, na
dor, na alegria, nas diversas circunstâncias da vida diária, na prática
do amor fraterno. Porém, sua presença mais viva, aquela que Ele mesmo
destacou expressamente em seus ensinamentos, se dá naquele que tem fome,
no que tem sede, naquele que está nú, no preso... Pois “tudo o que
fizestes ao menor de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”.
Assim sendo, para chegar a Cristo, que é o único caminho para Deus, o
caminho privilegiado e infalível, passa, sobretudo pelo necessitado,
pelo Pobre. Assim expressa Frederico Ozanam esta convicção num texto que
reflete com vivacidade a visão que chegou a ser fundamental em sua
maneira de viver a fé cristã, visão que continua sendo até hoje a alma
da espiritualidade própria da Sociedade de São Vicente de Paulo:
“Os Pobres, os vemos com nossos olhos; ali estão, e podemos colocar
os dedos em suas chagas e feridas; as marcas da coroa de espinhos são
visíveis em seus rostos. Vós, os Pobres, são a imagem sagrada de Deus, a
quem não vemos, e como não podemos amá-Lo de outra maneira, O amaremos
em vossas pessoas. Vós sois nossos mestres, e nós seremos vossos
servidores”.
Advirta-se a radicalidade da convicção: “Não podemos amar a Deus de
outra maneira”... A não ser nas chagas e coroas de espinhos que estas
imagens vivas de Cristo levam em seus pés, em suas mãos e em seu rosto.
Ao dizer isto, Frederico Ozanam revela uma unidade profunda de visão com
aquele que ele mesmo e seus amigos fundadores tomaram por patrono e
inspirados de suas conferências: São Vicente de Paulo. Inúmeras vezes
repetiu a quem se deixou inspirar por ele que “os Pobres são nossos
mestres e senhores”. De acordo com a ideia de que o Pobre é a imagem
viva de Jesus Cristo, eis aqui como expressa São Vicente de Paulo:
“Não temos que olhar os Pobres segundo seu aspecto exterior. Virai a
medalha, e à luz da fé, vereis que os Pobres nos representam o Filho de
Deus” (Obras completas de São Vicente de Paulo, CEME, Salamanca, tomo
XI, p. 725).
Esta visão do Pobre não foi invenção de Vicente de Paulo e nem de
Frederico Ozanam. Ambos encontraram-na no Evangelho. Foi também a visão
que durante séculos inspirou os imensos esforços que fez o mundo cristão
pela redenção histórica e eterna dos Pobres. Porém a ideia começou a se
difundir precisamente nos tempos de Vicente de Paulo, perante o
crescimento vertiginoso da população Pobre. A sociedade, através de seus
chefes políticos, começou a tratar o problema da pobreza, com meios
preferencialmente repressivos, como sendo uma mera questão de ordem
social. O século XVIII, quase acabou com toda visão cristã ante o
problema da pobreza crescente.
De maneira que quando muitos reformadores e revolucionários do século
XIX e também do século XX, assustados com as dimensões gigantescas da
pobreza criada pela revolução capitalista industrial que ia se
apoderando não só da Europa senão de todo o mundo, começaram a pensar em
suas próprias receitas para resolver o problema. E nenhum deles, fora
os de inspiração cristã, como Frederico Ozanam, lhes passou pela cabeça
apelar para a visão cristã tradicional para dar solidez a suas teorias e
seus esforços para tratar de resolver o maior problema social daquele
tempo, que se agravou ainda mais em nossos dias.
Porém, como também lembrou a toda humanidade o Concílio Vaticano II,
que quando se deixa Deus de lado, os mesmos esforços para humanizar a
vida social e torná-la mais justa, tornam-se ainda mais cruel ao homem e
à organização da sociedade. Exemplo disto, que não tem sido o único ao
longo do século XX foi a Revolução de Outubro (Revolução Russa em 1917,
também conhecida como Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha).
Frederico Ozanam, precursor do apostolado dos leigos
Os leigos têm por si só uma vocação ao apostolado que não brota da
hierarquia, senão de sua união pessoal com Cristo, cabeça da Igreja, ou
seja, de seu batismo:
“Inseridos pelo batismo no Corpo Místico de Cristo, é o Senhor mesmo
que os destina ao apostolado” (Apostolicam actuositatem, 3).
Esta missão ao apostolado, como dizíamos, não nasce da hierarquia da
Igreja, embora surja dentro da Igreja e deve ter em conta “os princípios
e os auxílios espirituais” que emanam da hierarquia, pois esta tem como
função própria: “orientar o exercício do apostolado para o bem comum da
Igreja”, e por isso tem o dever de “vigiar para que se preservem a
doutrina e a ordem” (Apostolicam actuositatem, 24).
A partir destas ideias do Concílio Vaticano II, tudo isto chegou a
ser hoje uma doutrina suficientemente conhecida e aceita pelo conjunto
da Igreja. Porém, nos tempos de Frederico Ozanam, na primeira metade do
século XIX, estava muito longe de ser esta uma mentalidade predominante
na Igreja Católica. Para Ozanam, já não seria surpresa em seu tempo,
estas ideias do Concílio Vaticano II. Ele quis se assegurar da natureza
prioritariamente leiga em suas conferências. Frederico Ozanam o fez com
toda clareza já no começo das conferências de maneira inequívoca e
simples:
“Queremos que esta Sociedade (de São Vicente de Paulo) seja plenamente leiga, sem deixar de ser católica”.
Anos depois, Frederico Ozanam interessou-se pelo mundo das missões, e
contribuiu com seus escritos aos recém-fundados: Anais da Propagação da
fé (de 1848). De uma de suas contribuições, destacamos esta frase que
resume perfeitamente sua visão de cristão leigo, maduro em sua fé e
consciente de sua responsabilidade:
“O leigo encontra-se associado ao sacerdote na obra da redenção universal”.
Esta frase reflete perfeitamente a visão definitiva de Frederico
Ozanam. A redenção universal da humanidade não pode ficar exclusivamente
nas mãos do clero. É uma tarefa para todos os membros da Igreja, pois
para todos os batizados que creem no seu nome, vale o mandato de Jesus
de anunciar o evangelho a todas as criaturas e nações.
Só que dentro deste mandato de redenção anunciado para todos os
povos, os membros da Sociedade de São Vicente de Paulo acreditam, desde a
sua fundação, que o que cabe a eles, por vocação dada sem dúvida pelo
Espírito do Senhor Jesus, é o de trabalhar não pela redenção de todas as
classes de pessoas, mas somente para as pessoas Pobres. Neste trabalho,
as Conferências de São Vicente de Paulo encontram como encontrou
Frederico Ozanam, seu caminho próprio para chegar até ao Deus de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Fonte: Jaime Corera, C.M.. •Traduzido do espanhol para o português por: Joelson C. Sotem, C.M.. (11/Set/2012)
FONTE: DA REDAÇÃO DO SSVPBRASIL