Os embates que os católicos alemães estão tendo com as mudanças
na oração eucarística são familiares aos católicos dos EUA, cuja
linguagem da missa foi modificada em 2011. Os alemães, que estão
acostumados a rezar que Jesus morreu "für alle" (por todos), passarão a
rezar que Jesus morreu "für viele" (por muitos). E a ordem para fazer
essa mudança está vindo diretamente do Papa Bento XVI.
A reportagem é de Jonathan Luxmoore, publicada no sítio do jornal
National Catholic Reporter, 04-05-2012. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Em uma recente carta de 2.000 palavras para os bispos de sua Alemanha
natal, o papa abordou a tradução da frase latina "pro multis" na oração
eucarística, em que Cristo disse aos seus discípulos na Última Ceia que
o seu sangue seria derramado, de acordo com a tradução literal, "por
vós e por muitos".
O pontífice disse que, desde os anos 1960, houve um "consenso
exegético" construído sobre a ideia de que as fontes hebraicas originais
queriam dizer não "por muitos", mas sim "por todos". No entanto,
escreveu Bento XVI, essa foi mais uma "interpretação" do que uma
"tradução", e o Vaticano, desde então, pediu que as Igrejas locais
revertessem para a frase mais acurada "por muitos".
Embora os bispos alemães tenham concordado, disse o papa, outras
Igrejas de língua alemã pareceram estar tencionadas a manter a frase
"por todos", arriscando assim "uma cisão em nossa esfera mais íntima de
oração".
"Nesse contexto, a Santa Sé decidiu que as palavras 'pro multis'
devem ser traduzidas como tais na nova tradução do missal e não
simultaneamente interpretadas. A tradução simples 'por muitos' deve
substituir o 'por todos' interpretativo", disse Bento XVI aos bispos.
A medida do papa ocorre depois de anos de polêmicas em torno das novas traduções da missa católica na Alemanha.
"Os bispos alemães há muito tempo adiaram o nosso novo missal e livro
de orações – mas, depois dessa última intervenção, eles terão que se
decidir sobre os textos finais", explicou Christoph Arens, editor-chefe
da Katholische Nachrichten-Agentur, agência de notícias católica da
Alemanha.
"As comissões da Igreja têm trabalhado por mais de uma década, e
houve outras disputas com o Vaticano acerca das traduções alemãs do
original em latim", disse Arens. "Com Bento XVI agora envolvido
diretamente, os especialistas terão que se unir".
O leigo católico falou com o NCR depois que a carta do papa, datada
do dia 14 de abril, foi publicada no dia 24 de abril no site da
Conferência dos Bispos da Alemanha.
Uma declaração anexa escrita pelo presidente da Conferência, o
arcebispo Robert Zollitsch, afirmava que a carta daria "um impulso
importante" para a conclusão das novas traduções.
No entanto, nem todos os católicos alemães acolheram a iniciativa de
Bento XVI, e alguns teólogos estão alertando que ela arrisca reverter os
ganhos litúrgicos do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Têm ocorrido embates acerca das frases usadas na missa católica desde
o Vaticano II, que deu ao termo "por todos" um uso comum na Igreja para
refletir a visão de que Cristo morreu para redimir toda a humanidade.
Em sua carta aos bispos alemães, Bento XVI disse estar ciente de que o
retorno à tradução "por muitos" apresenta "um grande desafio para todos
aqueles envolvidos na interpretação da palavra de Deus na Igreja, já
que, para os seus participantes regulares, ela irá parecer, quase
inevitavelmente, uma ruptura na mais sagrada das esferas. Eles irão
perguntar: Cristo não morreu por todos? A Igreja mudou o seu ensino?
(...) Bem, a Igreja deduz essa formulação da narrativa institucional do
Novo Testamento, e o faz por respeito à palavra de Jesus, para
permanecer fiel a ele".
"No coração da Igreja"
Na instrução Liturgiam Authenticam, de março de 2001, a Congregação
para a Doutrina da Fé do Vaticano disse que as futuras edições do missal
deveriam se concentrar em traduções literais.
Depois, em uma carta aos bispos de 2006, a Congregação para o Culto
Divino e a Disciplina dos Sacramentos disse que o papa ordenava que os
católicos revertessem para a frase "por muitos".
No entanto, especialistas da Igreja apontaram para diferenças
contínuas entre as práticas católicas na Alemanha e nas comunidades mais
liberais nas vizinhas Áustria e Suíça, que também usam traduções em
alemão.
Em um editorial do serviço de notícias do Vaticano, o porta-voz
vaticano, o padre jesuíta Federico Lombardi, disse que alguns
observadores ignorariam a distinção como algo "apreciado apenas por
especialistas".
No entanto, ele acrescentou que as palavras usadas na Eucaristia
estão "no coração da Igreja" e, portanto, são de "fundamental
importância".
"Não há dúvida de que Jesus morreu para que todos possam ser salvos", acrescentou Lombardi.
"Quando o Senhor oferece a si mesmo 'por vós e por muitos',
tornamo-nos diretamente envolvidos e, em gratidão, assumimos a
responsabilidade pela salvação prometida a todos. O Santo Padre – que já
abordou isso em seu livro sobre Jesus – está oferecendo uma catequese
profunda e perspicaz sobre algumas das palavras mais importantes da fé
cristã".
Na declaração publicada no site da Conferência Episcopal Alemã,
Zollitsch disse que houve uma "ampla discussão" sobre a relevante
terminologia durante a preparação do missal alemão, que será lançado em
2013, acrescentando que o papa já havia feito "uma contribuição valiosa
para a nossa compreensão da ação salvífica de Jesus Cristo".
Enquanto isso, o líder da Igreja da Áustria, o cardeal Christoph
Schönborn, elogiou a "clareza e profundidade argumentativas" do papa e
defendeu que a sua carta traria "uma maior proximidade às palavras
tradicionais de Jesus Cristo na Bíblia".
Concessão aos tradicionalistas?
Contudo, diversos teólogos alemães criticaram a intervenção de Bento
XVI, incluindo Hans-Joachim Höhn, professor de teologia sistemática da
Universidade de Colônia, que disse na semana passada que a medida estava
"fadada ao fracasso".
O professor da Universidade de Münster Klaus Müller acusou Bento XVI
de apaziguar os opositores arquitradicionalistas do Vaticano II. "A
carta do papa, que altera as palavras da consagração na missa, é uma
concessão política a círculos eclesiais extremamente conservadores",
advertiu Müller em um comunicado.
"Nem os evangelistas nem o atual papa ouviram os textos em aramaico
de Jesus. Como, então, ele pode exortar os bispos alemães a usar uma
formulação que segue a tradição grega, e assumir que a fórmula mais
usual de 'por vós e por todos' seja apenas uma tradução interpretativa?"
No entanto, em sua carta, o papa disse que os tradutores recentes
erraram muito na interpretação, acrescentando que a comunidade reunida
para a missa só poderia ser "muitos", e não "todos".
"Todos nós sabemos, pela experiência dos últimos 50 anos, como as
mudanças nas formas e nos textos litúrgicos afetaram profundamente as
pessoas", disse o pontífice aos bispos alemães.
"Há muito tempo argumenta-se que a tradução de 'muitos' deve ser
precedida por uma catequese aprofundada sobre a diferença entre tradução
e interpretação, uma catequese por meio da qual os bispos devem
informar os seus padres e deixar claro para os fiéis do que se trata.
Essa catequese é um requisito básico antes de a nova tradução entrar em
vigor".
Em sua entrevista ao NCR, Arens observou que a Igreja Evangélica da
Alemanha, conhecida como EKD, e grupos religiosos judeus apoiaram o uso
do termo "por muitos". Ele acrescentou que acredita que a maioria dos
católicos aceitaria a nova tradução "sem resistência".
"Grande parte do novo missal alemão já é altamente latinizado e
deselegante. Por isso, eu não prevejo que haverá quaisquer
características alemãs especiais que irão diferenciá-lo de outras
traduções em outras línguas", disse Arens.
"Comparado com os embates sobre o celibato e o abuso sexual clerical,
houve pouco interesse público por esses novos textos, e eles
provavelmente não irão gerar muito novo interesse na fé católica".
FONTE: UNISINOS/ssvpbrasil.org.br